Corria o ano de 1938. O Secretariado da Propaganda Nacional (SPN) organizava o concurso que havia de ficar conhecido por “Aldeia mais portuguesa de Portugal”. Percorrendo o país em busca de candidatos, os responsáveis pela selecção foram parar a Cambra:
“Por uma estrada cheia de sombra e beleza, em frente dum vale encantador de bucolismo e côr, um automóvel deslisa suavemente transportando três passageiros embevecidos e encantados com o que os seus olhos gulosos saboreavam. Uma curva mais apertada, um estremeção mais violento, uma paragem brusca: estava-se no coração da Frèguesia de Cambra(...)”(1)
Procurando quem os informasse sobre a localidade, perguntaram a uma mulher, capucha vestida, longos anos já vividos, que se disponibilizou a levá-los a quem sabia-
“gente abastada e sabedora, que mora mais adiante”(2). Eles que a seguissem. Espantaram-se os citadinos, pois havia que percorrer cerca de dois quilómetros e eles tinham um carro. Ela que entrasse e indicasse o caminho, isso sim fazia sentido. Não fez. A mulher recusou-se a entrar no automóvel e cada um foi pelos seus próprios meios. Eles de carro, ela a pé.
"Capucha"- Boletim da Comissão de Iniciativa
O SPN, dirigido por António Ferro, foi o responsável pela a imagem do país que Salazar quis fazer passar nos anos que antecederam a segunda guerra mundial. Um país organizado, limpo, orgulhoso das suas tradições, ordeiro. Só a última correspondia à realidade mas, como o próprio Salazar tinha afirmado na tomada de posse de António Ferro, “em política o que parece, é”. E foi. De Norte a Sul multiplicaram-se os ranchos folclóricos, “decorou-se” o património(3), alindaram-se os lugares. Muito do imaginário ainda hoje dominante sobre o meio rural, teve aqui a sua origem. O concurso da “Aldeia mais portuguesa de Portugal”, fazia parte dessa estratégia.
A avaliar pelo que é relatado no “Notícias de Vouzela” da época, foi muito o que, em Cambra, interessou aos organizadores. Os cantares, o artesanato de lã e de linho, o viver:
“A casa rústica, sem rebôco ou caiação exterior, de grossas paredes ‘patinadas’ pela chuva e pelo sol de muitos anos, com seu algerós de pedra; os extensos parreirais enchendo de sombra e de frescura as tortuosas ruas, o carro rústico, com seu anteparo de verga, (...) puxado por mansas vacas de grandes olhos meigos e resignados; o vasto e semi-circular páteo ou quinteiro, rodeado das várias dependências da casa do lavrador, pejado de mato, de ancinhos, de enxadas, de carros, de alfaias domésticas (...); o extenso eirado onde moçoilas desempenadas, alegres e gentis, de ancinho em punho, enfeixavam feno ou remexiam a semente de erva estendida ao sol; os grupos gárrulos de segadores e segadoras curvados sôbre os campos cobertos de erva já madura foram espectáculos e aspectos que se fixaram indelèvelmente na memória dos que os viram.
(...)
A coroar o espectáculo magnífico, a ‘Cova do Lobishomem’ e o panorama soberbo dos pendores do Caramulo dominados pelas meio derruídas paredes do velho castelo”(4).
A restante fase de selecção foi acompanhada ao pormenor. Na sua edição de 15 de Junho de 1938, na rubrica “Notas &”, lia-se na primeira página do “Notícias de Vouzela”:
“Consta-nos que a frèguesia de Cambra, do nosso concêlho, continúa a ser a terra, entre as já visitadas para tal fim, que reune mais probabilidades de representação para a classificação da ‘aldeia mais portuguesa de Portugal’, muito concorrendo para isso as suas canções regionais”.A 15 de Setembro era noticiada a constituição do júri, cuja visita à localidade era descrita na edição de 1 de Outubro. O final desta história é conhecido: venceu
Monsanto, do concelho de Idanha-a-Nova, que ficou com o “galo de prata” que, durante meses, muitos sonharam ver nos píncaros de uma das torres da igreja de Cambra.
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(1)- Uma Frèguesia tìpicamente portuguesa, Santos Pereira, Notícias de Vouzela de 1 de Junho de 1938.
(2)- Idem.
(3)- Grande parte das intervenções então feitas nos monumentos nacionais, obedeceram a critérios que não os do rigor histórico.
(4)- in, Notícias de Vouzela, 1 de Junho de 1938.