quinta-feira, março 29, 2007

Cem anos de solidão

“(...) Aureliano pulou onze páginas para não perder tempo com factos conhecidos de mais e começou a decifrar o instante que estava a viver, decifrando-o à medida que o vivia, profetizando-se a si mesmo no acto de decifrar a última página dos pergaminhos, como se se estivesse a ver a si mesmo num espelho falado.”
- Cem anos de Solidão, Gabriel Garcia Marquez

Há livros que registamos na memória, não apenas pelo que dizem, mas também pelo momento em que com eles contactamos. Livros que um qualquer acaso permitiu que se cruzassem com a nossa realidade pessoal. “Cem anos de solidão”, que agora comemora os 40 anos de publicação, foi um desses livros. Abri-o nos primeiros dias de um Outubro particularmente chuvoso, de que me lembro do forte cheiro a terra e do verde ainda intenso das videiras. Foi aí que me misturei com as venturas e desventuras de Macondo, de Melquíades, dos Buendia, com o sonho e a ingenuidade dos homens e a lucidez e a bondade das mulheres. À medida que ia avançando naquele mundo fantástico, em que os excessos dos homens se confundem com os do meio, embalado pelo som do gotejar dos beirados, senti-me a misturar a ficção com a minha realidade, nesta terra em que, como diz o “nosso” Manel, “a sabedoria das pedras é tanta que dos homens pouca história reza”. Foi aí, num final de férias, que vi, como nunca tinha imaginado ser possível, que a solidão é o contrário da solidariedade. Foi também aí, que tive a certeza de apenas faltar um Gabriel Garcia Marquez, com o talento necessário para cantar o mundo fantástico das mulheres e dos homens desta minha terra, construído por mouras encantadas e tentações do demo, perpetuado nas pedras, mas guardado nos corações.

terça-feira, março 27, 2007

“Sem ordem, sem plano, sem qualquer consideração pelo espaço natural”

“(...)desde que muita gente, grandes empresas e autarcas em particular, perceberam que havia muito dinheiro a ganhar, acabaram as resistências – ainda se lembram de como as autarquias e as “populações” resistiam às eólicas que lhes estragavam a recepção das televisões? – e começou a competição por traze-las a tudo o que é monte e vento, sem ordem, sem plano, sem qualquer consideração pelo espaço natural. O problema não está nas energias renováveis, que são de apoiar sem hesitação, está, como em tudo, na combinação da ganância com o desenvolvimentismo, na pressa para ganhar dinheiro no primeiro sítio onde ele pareça poder ganhar-se, levando aos parques eólicos e às barragens o mesmo caos intenso que já conhecemos muito bem de todo o lado.”- Pacheco Pereira.

Pacheco Pereira já disponibilizou, no “Abrupto”, a sua crónica sobre o “toque de finados” da paisagem natural no nosso país (também disponível na edição de Sábado do "Público"). Dura, clara, triste, vale a pena ler. Entra até ao osso, nomeando responsáveis, confrontando-nos com o país de barracões em que nos tornámos e denunciando os perigos da anunciada avalancha de “obra verde”, credibilizada por esse novo profeta que é “o ecologista reconvertido aos negócios do ambiente”. Na verdade, a selvajaria com que se começam a espalhar parques eólicos, não é alternativa à selvajaria com que se espalhou cimento e eucaliptos pelo país. A alternativa está em acabar... com a selvajaria.

Só que, Pacheco Pereira, é o mesmo que defende ser necessário recolocar a questão do liberalismo na agenda, defendendo-o como solução para um “crescimento económico” que nunca mais arranca e para uma Europa que hesita. Estranho. Reduzir a intervenção do Estado e transferir para a esfera privada as questões do ordenamento do território, pressupõe aumentar a influência dos que têm poder económico, os mesmos que exploraram o mercado interno até ao tutano, agarrados ao lucro fácil da construção civil. Precisamente os mesmos que contribuíram para o “Portugal feio” que hoje somos, estejamos a falar da “Estrada Nacional número um”, ou do absurdo crescimento do Algarve. Convém não esquecer que mesmo os negócios feitos com a chancela estatal, desde as auto-estradas com traçados absurdos, até aos estádios de futebol, passando por mil e um projectos locais, do interior ao litoral, de Norte a Sul, beneficiaram, sempre, interesses privados. Ou não?

Existe consenso quanto à necessidade de investimentos de longo prazo. Investimentos estruturantes que funcionem como elementos disciplinadores, reduzindo gastos e abrindo, com tempo, novas áreas de negócio- nenhum deles muito apelativo, de imediato, para a iniciativa privada. Costuma haver unanimidade quanto ao exemplo da educação (quanto a mim, “começando a casa pelo telhado”, mas isso é outra conversa). Mas podemos falar da agricultura e dos produtos alimentares, da floresta, da distribuição, de uma nova gama de serviços para os mais idosos (incluindo o próprio turismo) e, também, das “energias alternativas”. Todos eles requerem investimento sem retorno imediato, alguns com uma componente social dominante (a agricultura, por exemplo), com ganhos que, a curto prazo, se “limitam” ao que permitem poupar nos “RSIs” e noutras medidas de apoio. Sobretudo, todos eles exigem que sejamos algo de completamete diferente do que temos sido. Será que há assim tantos “capitalistas desinteressados” dispostos a avançar? Não há. Pelo menos, enquanto existirem áreas mais fáceis onde haja “muito dinheiro a ganhar”. Onde o “laissez faire” permita quase tudo, “sem ordem, sem plano, sem qualquer consideração pelo espaço natural”.

quinta-feira, março 22, 2007

Também à água resta um dia...

(Desenho: Dachuan Xia, China)
"As águas potáveis são abundantes, puras, leves e saborosas”.
- in Vouzela- Antiga Capital de Lafões e seus Arredores, Edição da Comissão de Iniciativa, sd.

Dia Mundial da Água- mau sinal. Quando algo “ganha” o direito ao “seu dia”, é porque sofre tratos de polé nos restantes. É o que se passa com a água. Os estudos revelam que alguns dos mais importantes rios do Mundo, correm o risco de secar. Revelam, também (há muito), que milhões de pessoas (sobretudo, crianças) morrem todos os anos, por não terem acesso a reservas satisfatórias de água potável. Revelam, ainda, que o problema já não se limita às fronteiras dos “pobrezinhos” e que a única causa de tudo isso é a acção do Homem. “Acção do Homem”- curiosa forma de dizer as coisas, responsabilizando todos para ninguém responsabilizar. É como a comemoração do Dia Mundial da Água.

Bom, mas a última coisa que pretendo é fazer um texto “sentimentalão” sobre a água. O que pretendo é falar do Zela e do Vouga e da necessidade de os definirmos como prioritários, recuperando-os antes de se gastar um único cêntimo noutra coisa qualquer. Falar-vos dos recursos imensos que ali estão, ignorados, desaproveitados, à espera que alguém perceba que não há “piscinazeca” que se lhes compare- como gostava de comemorar este dia, com um mergulho na Foz. Pois, a Foz... Lugar de alegria que foi, cenário de mil e uma experiências que nos fizeram homens, para ali está, limitada ao estatuto de beleza para ver e não tocar. A menos que a tristeza seja tanta que nem pensar se permita.

Está visto que hoje não dá para mais. Fiquem-se com água engarrafada e não se esqueçam de fechar bem as torneiras.

segunda-feira, março 19, 2007

Revisão dos PDM sob suspeita

Isto é mesmo um tijolo!

As próximas alterações aos Planos Directores Municipais (PDM), podem vir a ser aprovadas sem a prévia avaliação ambiental, ao contrário do que é exigido pela União Europeia desde 2001. Um decreto-lei recentemente aprovado, que devia transpor para a legislação portuguesa as directivas europeias, é pouco claro quanto ao período temporal abrangido pelo diploma, podendo deixar de fora os PDM que já iniciaram o seu processo de revisão.

Os Planos Directores Municipais são instrumentos de planeamento que, na verdade, nunca cumpriram satisfatoriamente a sua função, acabando por serem associados a muitas “anedotas” e situações duvidosas. Por exemplo, quando o Engenheiro Sócrates dirigiu a pasta do Ambiente, denunciou o facto de estar prevista habitação para uma população três vezes superior à portuguesa. Mais grave do que isso, situações houve em que estranhas aquisições massivas de terrenos, anteciparam a alteração do respectivo estatuto, “proposta”, mais tarde... nos PDM.

Por sua vez, os mecanismos de controlo previstos, nomeadamente no Artigo 77º do Decreto-Lei nº 380/99 de 22 de Setembro, deixam muito a desejar. Quem não tiver formação na área ou dinheiro para se fazer acompanhar por alguém que a tenha, dificilmente consegue interpretar satisfatoriamente os documentos, de modo a aproveitar o período de “discussão pública”. Esse seria, aliás, um “serviço público” que os partidos e as associações locais podiam prestar.

Numa altura em que se prevê nova “vaga de cimento” à custa dos fundos que aí vêm, a pouca clareza dos diplomas, sobretudo os que se refiram à área do ambiente, pode não ser inocente. As declarações do Ministro Nunes Correia, defendendo que a submissão dos PDM a prévia avaliação ambiental devem, para já, “ficar ao critério do promotor”, justificam as maiores preocupações. Resta a atenção e a denúncia das populações.

sábado, março 17, 2007

A encomendação das almas

Doisneau

Mais uma vez, Portugal volta a apresentar a evolução dos “custos do trabalho”, mais baixos da União Europeia (1,9% para 2,9% da “Europa a 27” e 2,5% dos países da Zona Euro). Por “custo do trabalho”, entende-se o conjunto das despesas que as empresas têm com a remuneração e as contribuições dos seus trabalhadores, sendo os valores nacionais dos mais modestos em todos os sectores, excepto... na construção. De facto, os 3,7% de aumento verificados neste sector, são os únicos que ultrapassam os da média europeia.

Na opinião de alguns “teóricos”, esta “moderação” é fundamental para aumentar a competitividade. O problema, é que nada indica que ela esteja a ser aproveitada pelas empresas para se reorganizarem, redefinirem a sua área de intervenção, de modo a conseguirem produtos de maior valor acrescentado e fugirem ao “campeonato do baratinho”, dominado pelos asiáticos. Na verdade, com um crescimento da produtividade de 0,5% em 2006, Portugal deve manter-se nas últimas posições dos países da “Zona Euro”, condenado a assistir ao encerramento ou à “deslocalização” das tradicionais unidades têxteis e do calçado.

Somos dos que pensam que o Poder Autárquico tinha um papel a desempenhar, de que se demitiu, não percebendo que as especificidades de cada região, constituem o produto mais protegido na concorrência. Perante isto, e se nada se alterar, o que resta? Mais uma vez a construção, pois claro, com o argumento de peso de cerca de 30% da população activa estar dela dependente (para os que diziam que os preços da habitação iam baixar, façam o favor de consultar o Destaque). Enquanto houver um metro quadrado disponível para espalhar cimento, é esse o “fado” nacional. “Aí vai balde!”

Agricultura ao fundo

As regras de distribuição dos fundos para a agricultura, vão mudar. No caso português, cerca de 50 milhões de euros por ano, vão passar das ajudas directas aos agricultores, para o apoio ao “Desenvolvimento Rural”. Recorde-se que a metodologia usada até agora, limitava os apoios a um número muito pequeno de agricultores (cerca de 5,6%), sem impacto significativo no reordenamento do território (eu disse, “reordenamento”!) e deixando muitas dúvidas sobre o real investimento no sector.

No entanto, de acordo com o “Público” (citando a “Lusa”, 16 de Março), a nova distribuição de fundos vai privilegiar as regiões “onde há mais agricultores afectados pela medida”, ou seja, onde estão os tais 5,6%. A ser assim, agrava-se a perversão.

Até hoje, ignorou-se a função social e ambiental que a agricultura pode ter, estancando o abandono de grande parte do território e diminuindo a pressão sobre as medidas de segurança social. A verdade é que se deixaram os pequenos e o médios agricultores entregues à sua “sorte”, ao mesmo tempo que se estimulava uma agricultura não produtiva, unicamente orientada para os financiamentos da Europa. Numa altura em que se vai usufruir das últimas ajudas, com a chegada dos últimos fundos, seria importante que fossem usadas para inverter a situação actual e para que o pouco que resta, não se “afunde”.

Aquecimento global? Sai um refresco

Está a aumentar a temperatura média da água do mar. Assim como assim, está a aumentar tudo e, como diz um vizinho meu, exemplo de pragmatismo, “não se percebe tamanho alarido, até porque será bem agradável ter um Algarve a começar no Minho”. Pois. Atirei-lhe que era preciso ter cuidado com o peixe-aranha e não ser impossível dar de caras com um tubarão a tirar-lhe as medidas no meio do “crol”. Franziu o sobrolho. À laia de despedida, rematei com o fim da sardinha que prefere as águas frias. Abriu um sorriso e arrumou-me: “Nunca gostei do cheiro da sardinha assada”. Onde será que meti a caçadeira?!!!

terça-feira, março 13, 2007

Ampliação da Avenida João de Melo? Por favor, estejam quietos

Foto 1: Manhã de Domingo no limite da Avenida João de Melo
e no início da Praça da República.
À esquerda, a casa da "discórdia" (foto de Guilherme Figueiredo)

A Câmara Municipal de Vouzela vai “voltar à carga” com a ampliação da Avenida João de Melo. Já anunciada em 2004, a “obra” parecia ter sido abandonada por falta de verba. Afinal, talvez animados com os últimos “cêntimos” que se esperam da Europa, tudo indica que os responsáveis autárquicos voltem a colocar o projecto na ordem do dia.

Diga-se, desde já, que não faz qualquer sentido: não contribui para “arrumar” a imagem de uma zona central (e cada vez mais desleixada) da vila, não melhora a circulação e não parece ter outra justificação que não seja apoiar jogadas de especulação imobiliária. Mais uma vez, comete-se o erro de confundir “desenvolvimento” com construção, sem qualquer ideia sólida que motive a permanência das pessoas no Concelho. Se a população diminui e existe (se é que existe...) falta de habitação, é porque se estão a abandonar outros edifícios que justificavam restauro, com consequências inevitáveis na ocupação do solo e na descaracterização da paisagem. De acordo com os dados do último censos (cobrindo o período que vai de 1991 a 2001), a população de Vouzela diminuiu de 12240 habitantes para 11916 (11879 em 2006), enquanto, no mesmo período, se construíram mais 1199 edifícios, a maioria dos quais para habitação. Mas, vamos por partes.

Foto 2: A casa por onde se pensa "furar" a ampliação da avenida

(ver aqui as imagens originais)

O que se diz querer

Concretamente, pretende-se aumentar a Avenida João de Melo, abrindo uma passagem pelo espaço da casa (ver Foto 2)) onde durante anos esteve o fotógrafo, a sede do PSD e, actualmente, está uma “loja chinesa”. Quando a ideia foi apresentada, falou-se na necessidade de dar outra “dignidade” à Igreja da Misericórdia, o que, pelo que parece, seria conseguido com a abertura de uma rua ao seu lado. Mas também se foi dizendo, embora sem grandes pormenores (veja-se o “Notícias de Vouzela” de 12 de Março de 2004), que era preciso aumentar a construção no centro da vila... Na altura, o Presidente da Câmara, Telmo Antunes, anunciava o seu plano de acção, “ameaçando” deixar marca para os vindouros: “(...) quaisquer que sejam os protagonistas políticos no município de Vouzela, vão ter que seguir a minha estratégia, pois penso que é a mais adequada e concertada para o desenvolvimento harmonioso do concelho”.

Foto 3: Assinalado com o nº 1, está o prédio do "Notícias de Vouzela".

Com o nº 2, um edifício que, apesar de dominante, se encontra, hoje, em acentuada degradação

O que se não quer dizer

Ora, salvo melhor opinião, nem “dignidade”, nem “harmonia”, nem utilidade, são características deste projecto. Desde logo, porque será uma rua para “parte alguma” o que, independentemente da carga poética que possa ter, só pode ser justificado com o interesse, pouco poético e nunca assumido, de urbanizar terrenos na continuação da Av. João de Melo, até à variante, acabando, de vez, com qualquer hipótese de recuperação do Largo do Convento e até com a justificação do nome (já não tinha memória do convento e deixa de ser “largo”). Depois, porque se aceitarmos como verdadeiro o propósito de dar maior destaque ao monumento, a medida faz quase tanto sentido como mandar demolir o último piso do prédio do “Notícias de Vouzela”, esse sim, com impacto evidente (ver Foto 3, ponto 1). Aliás, se querem obra “digna”, resolvam de uma vez por todas o problema em torno da casa que foi do Dr. Gil (Foto 3, ponto 2), cada vez mais degradada e que muito contribui para o ar de abandono, de desleixo, que actualmente caracteriza a Praça.

O que pode acontecer

Numa época de grande “fé” em “desenvolvimentos”, alterou-se o arranjo da Praça da República, retirando o separador arborizado que ali existia. A circulação automóvel ainda não tinha atingido o caos actual e não era imaginável que alguma vez atingisse, mas aí começou a morte de uma “praça”. Hoje, um dos maiores problemas daquela área e de todo o centro apelidado de “histórico” é, precisamente, a completa desorganização da circulação e do estacionamento automóvel que urge disciplinar com alternativas credíveis, talvez limitando a Rua Conselheiro Morais Carvalho a um único sentido (ascendente) e melhorando a oferta de transporte público para a ligação entre as freguesias (e, desse modo, ganhar argumentos para outras medidas mais restritivas). Claro que sobre isto ninguém fala e, quando falarem, à laia de faz de conta, será muito mais fácil penalizar o “elo mais fraco”, espalhando parquímetros a granel, até porque, segundo consta, os cofres da Câmara andam algo vazios...

A ampliação da Avenida João de Melo, longe de contribuir para a resolução deste problema, vai agravá-lo. Se a nova artéria tiver dois sentidos, cria-se um cruzamento absurdo, e um significativo aumento do trânsito naquela área. Em antevisão, já se pode imaginar, daqui a uns tempos, haver necessidade de controlar o caos através do recurso à tradicional rotunda que, propõe-se, deve ser baptizada com o nome do actual Presidente da Câmara. Para que ninguém esqueça...

Mas, admitindo que o previsto acrescento vai ter sentido único, então o seu o objectivo é claro: facilitar o acesso a novas zonas que se pretende tornar urbanizáveis, até à variante. Ora, continuar a construir naquela área, para além dos problemas inevitáveis com o aumento do índice de ocupação, vai alterar toda a organização dos espaços que, curiosamente, até estão classificados como “históricos”. Só que tal classificação não deve estar relacionada, apenas, com a idade dos edifícios. Tão importante quanto isso, é o modo como se foi desenhando o crescimento da localidade, reflectindo a organização e o modo de vida das pessoas ao longo dos tempos. O desenho em que Vouzela baseou o seu crescimento, caracterizava-se pela existência de praças, largos, terreiros, como pontos de confluência das diversas artérias. Eram os “centros económicos”, elementos reguladores da relação com as áreas rurais envolventes, normalmente associados à realização dos mercados e, consequentemente, locais privilegiados de convívio. Claro que nada disto faz sentido na perspectiva da especulação imobiliária, muito mais interessada na rua contínua e na desvalorização do espaço público. É isto que vai acontecer com a ampliação, é isto que importa denunciar.


Tem havido uma relação difícil entre o poder autárquico e aqueles que são os principais recursos do Concelho, nomeadamente a paisagem. Optou-se por embarcar na tendência nacional da “política do cimento”, até agora estimulada pela Lei das Finanças Locais e de que apenas resultou uma ocupação desordenada dos solos, o agravamento da deterioração dos recursos hídricos e a constante ameaça da descaracterização da paisagem que, apesar de rica, começa a apresentar “brechas” perante a dimensão dos ataques. Contam-se pelos dedos de uma só mão (sejamos optimistas...), as obras que souberam integrar-se e acrescentar algo ao que já existia. Perante isto, começa a ser tempo de mostrar aos “responsáveis” que há uma “opinião pública”, que há uma consciência sobre a importância do património colectivo e que, perante a falta de ideias que os caracteriza, o melhor que têm a fazer... é estarem quietos.

quarta-feira, março 07, 2007

A vingança dos putos

La sonnette, Doisneau

Foi mais ou menos como o miúdo que deita a língua de fora no momento decisivo do retrato de família. Num estudo da responsabilidade da Unicef, as crianças portuguesas revelaram ser das mais infelizes dos países analisados (OCDE). Incrível. Andam os papás a dar forte e feio nas respectivas carreiras, a comprarem as “game box” topo de gama, a berrarem por escolas com prolongamento de horário, mais o Inglês às segundas, quartas e sextas, a natação às terças, quintas e sábados, mais os “Tempos Livres”, o “Campo Aventura” nas férias, a “Quinta Pedagógica” aos fins- de- semana... e os malandrinhos não só não agradecem, como ainda borram a pintura toda nas instâncias internacionais. Não querem lá ver que os ranhosos dos putos se calhar preferiam apropriar-se da rua, subir às árvores, mergulhar nos rios, roubar fruta, sem mestre nem horário...

Vamos por partes que o assunto é sério. Ao contrário do que é habitual, o estudo não se limita às carências económicas. Desta vez foram mais longe e deram “tempo de antena” à rapaziada. E eles aproveitaram: que até falam com os papás (Portugal obteve o segundo melhor resultado na relação familiar e com os amigos), tomam refeições em conjunto, comem a sopinha toda… mas são infelizes. Mexem-se pouco, são gordos, sentem-se desajeitados, deslocados e não morrem de amores pela escola (apesar de ser dos países com maior percentagem de respostas favoráveis à instituição...). Claro que o estudo é mais completo, avaliando o “bem-estar material”, “saúde e segurança”, “educação e bem-estar”, “família e relação com os pares” e ainda, “comportamentos de risco”. Exceptuando o que diz respeito à “família e relação com os pares” (2.º lugar, atrás da Itália), as classificações de Portugal são modestas em todos os campos, limitando-se a um 17.º lugar na média do conjunto das avaliações, entre 21 países (atrás de nós, ficaram a Áustria, Hungria, Estados Unidos e Reino Unido). Mas é na avaliação do que os autores chamam “bem-estar subjectivo”, que os resultados me parecem mais interessantes. É aí que a rapaziada mostra o modo como percepciona a sua própria realidade e, se a opinião manifestada é mais benévola do que a fornecida pelos restantes números (14.º lugar, à frente do Canadá, Bélgica, República Checa, França, Polónia, Reino Unido e Estados Unidos), o resultado final só pode ser considerado negativo e preocupante.

Calculo que deste estudo venham a surgir novas exigências sobre a Escola, comissões de protecção de crianças e jovens e outros organismos de enquadramento e apoio da infância e juventude, numa desesperada tentativa de disfarçar o indisfarçável: as condições de vida de um número cada vez maior de famílias, empurradas para os subúrbios de cidades onde não têm raízes, condicionadas pela ameaça do desemprego, com restrições crescentes ao usufruto do tempo e do espaço, não são compatíveis com o saudável desenvolvimento das suas crianças e jovens. Mais: não são compatíveis com a existência de qualquer coisa a que se possa chamar família. Fechadas, paradas ou abandonadas (no mais amplo sentido do termo, ou em mil e uma instituições e/ou actividades), elas (as crianças) percebem isso. Pelo menos, sentem-no. Por isso, tremeram a fotografia.
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PS: Este estudo mereceu um significativo destaque do “Público” na sua edição de 15 de Fevereiro. Depois, houve uma referência num dos telejornais. Depois... o silêncio. Hoje, foi divulgado o resultado de um "inquèrito" feito pelo Conselho Nacional de Educação sobre a situação actual do ensino em Portugal. Páginas e páginas sobre a necessidade de alterar a gestão das escolas e, num cantinho, a opinião manifestada pelos jovens, reclamando mais tempo livre (não confundir com "Tempos Livres"). Imagina-se o sorriso complacente dos burocratas, enquanto desabafavam: "São jovens...não pensam".

segunda-feira, março 05, 2007

Praça da República: curta história em imagens

(Imagem retirada de "Vouzela- A Terra, os Homens e a Alma", Vouzela, 2001)

Desconhecemos a data desta imagem, embora talvez seja do princípio do século XX. São visíveis os edifícios ainda hoje existentes, sobretudo no sentido da Rua Conselheiro Morais Carvalho.

(Imagem retirada de "Vouzela antiga Capital de Lafões e seus Arredores", Edição da Comissão de Iniciativa, sem data)

Do ângulo oposto, ainda sem o Pelourinho, sem passeios e sem... pavimento. O actual arranjo da Praça, seria posterior.

(Postal, edição Lifer- Porto)

Imagem dos anos 60, já com o actual arranjo, mas ainda com o separador arborizado.

(Foto, Guilherme Figueiredo)

No princípio dos anos 70, outro desenho do separador.

(Foto, Guilherme Figueiredo)

Típica cena das manhãs de Domingo, captada da Avenida João de Melo. O separador tinha saído pouco após o 25 de Abril, mas o automóvel ainda não dominava o espaço.

sexta-feira, março 02, 2007

A propósito do projecto de restauro da Torre Medieval de Vilharigues

Justifica-se uma chamada de atenção para o projecto de restauro da Torre Medieval de Vilharigues. Da responsabilidade do Arquitecto Renato Rebelo, prevê intervenções na ruína da Torre, nos espaços envolventes e na Capela de Santo Amaro. O aspecto mais interessante, está na opção pelo critério da reversibilidade, limitando-se à consolidação das paredes existentes e na colocação de um volume no seu interior dividido em três pisos, unidos por uma escada. Deste modo, permite-se que, em qualquer momento, a nova construção possa ser retirada, mas cria-se uma estrutura que possibilite a “reinterpretação dos espaços e percursos para que os visitantes pos­sam perceber como era utilizada aquela torre e qual o seu papel”. Quanto a materiais, serão utilizados o ferro, a madeira e o vidro.

A metodologia de intervenção no património edificado é normalmente polémica, quer pela abordagem que faz aos monumentos, quer pelas possibilidades de utilização que permite. São muitos os casos em que a intervenção adulterou o significado do edifício e, pura e simplesmente, ignorou a sua relação com o meio envolvente. De facto, desde 1976 que a UNESCO, na chamada “Recomendação de Nairobi”, põe o acento tónico na importância de se respeitar o princípio do “conjunto histórico”, entendido como o “agrupamento de construções e de espaços ao qual se reconheça valor arquitectónico, estético, histórico ou sócio-cultural” (1). Deste modo, procurou-se combater a tendência para se encarar o monumento como peça isolada e descontextualizada. Aliás, a mesma Recomendação definia o conceito de “envolvência” do conjunto histórico, alertando para a relação com o quadro natural e/ou edificado, “cuja percepção afecta a do próprio conjunto histórico” (2).
Outro problema que nem sempre foi evitado, resultou da transformação do conjunto/monumento intervencionado num “elefante branco”, com custos de manutenção elevados e ousados projectos de dinamização, dificilmente suportáveis por muito tempo. No caso concreto da Torre de Vilharigues, para além do aspecto positivo já realçado, há dúvidas que convém esclarecer. De facto, não sabemos o que está previsto na relação do monumento com a localidade, nem o modo como se pensa enquadrar e dinamizar toda a obra prevista para o espaço exterior (palco, “zona de lazer e merendas”, arrumos, churrasqueira, cozinha, etc.). Também seria interessante saber de que modo se pensa usar o piso de entrada, já que parece ser o único acessível a visitantes com limitações motoras, apesar da bem intencionada rampa que se vai acrescentar ao monumento. Por último, se os números publicados no Boletim Municipal estão certos, prevê-se gastar 170 mil euros com as obras na Torre e 180 mil no espaço exterior e construções de apoio. Podemos estar errados, mas parece-nos haver aqui qualquer coisa que não soa bem...
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(1)- Introdução ao estudo da História e Património locais, Jorge Alarcão, Coimbra, Cadernos de Arqueologia e Arte- 2, 1982.
(2)- idem
Imagens retiradas do Boletim Municipal da Câmara Municipal de Vouzela e de folheto da Região de Turismo Dão Lafões.