É pouco, senhor Primeiro-Ministro
Já o Presidente da República se tinha interrogado sobre os motivos que fazem nascer tão poucas crianças em Portugal. Como normalmente acontece, há a tentação para responder com dinheiro a problemas que exigem respostas bem mais alargadas e que inevitavelmente põem a nu o desordenamento do nosso território.
Quando se diz que a maior parte da população portuguesa se concentra nas cidades do litoral, simplifica-se uma realidade bem mais complexa. Na verdade, ela limita-se a uma existência suburbana, quer na localização, quer no modo de vida. Não é nos centros de Lisboa, Porto, Setúbal... mas sim nas áreas de expansão desses núcleos que se concentra a grande maioria dos portugueses. As causas são conhecidas e têm que ver quer com a desestruturação de certas actividades que agravaram o êxodo rural e o desemprego, quer com a especulação imobiliária que retirou vida dos centros. Como alternativa, “urbanizaram-se” as periferias, criando uma oferta residencial mais acessível, mas sem estruturas de apoio com capacidade de resposta para o fluxo da procura.
Daqui resultaram alguns dos maiores dramas da nossa triste realidade. Por um lado, um número imenso de famílias obrigado a grandes, caras e penosas deslocações casa-trabalho-casa, vivendo sobre a constante ameaça do desemprego, sem espaço para esses “luxos” da vida familiar. Por outro, um número significativo que sobrevive à custa dos apoios sociais, transformados, na falta de actividades económicas que integrem as pessoas, em objectivos últimos da existência. Em qualquer dos casos, poucas ou nenhumas condições existem para trazer crianças ao mundo. E, tal como está mais do que demonstrado, se a situação não é pior, isso deve-se à ignorância que vai mantendo diversas situações de gravidez não planeada, nem desejada.
Apresentando números relacionados com 2006 (ainda não foram tornados públicos os números para 2007), a Comissão Nacional de Crianças e Jovens em Risco divulgou ter havido, em todo o país, a abertura de mais 10 mil processos do que no ano anterior. O principal motivo que levou à abertura desses processos, foi a “negligência”. Seria interessante saber a dimensão dos casos que, sob esse rótulo, mostram realidades de abandono forçado, como a das “crianças com chave”(1) que começa a assustar grande parte dos países desenvolvidos.
Perante isto, acreditar que trezentos e não sei quantos euros podem melhorar a situação, ou é ingenuidade ou hipocrisia. Nenhuma família trabalhadora (e estamos para ver quais os limites do apoio) vai sentir, por isso, maior segurança para criar os filhos. Do que elas precisavam era de maior estabilidade, de mais tempo para si, coisas que não basta dinheiro para conseguir.
Pelo contrário, a medida arrisca-se a ser canalizada para famílias desestruturadas, sem condições para integrarem e educarem crianças. Famílias para quem os serviços sociais têm sido impotentes para mudar a existência. A partir de agora vão proporcionar-lhes mais uns quantos euros, durante quatro meses. E crianças em perigo por muitos anos.
Não é por falta de um qualquer abade de Trancoso que têm nascido menos crianças em Portugal. Nem por egoísmo. É pelo facto de muitos portugueses terem falta de qualidade de vida. Para resolver o problema, não basta dinheiro. Por isso é pouco, senhor Primeiro-Ministro. Muito pouco.
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(1)- Problema que consiste na existência de um grande número de crianças forçadas a passar a maior parte do tempo sem a supervisão de um adulto, o que as leva a ter chave de casa.