quinta-feira, setembro 27, 2007

Feito Homem

James Nachtwey

Viveu sempre na mesma casa, no cimo do monte, ao pé do sol posto, como se dizia e nos parecia em miúdos.
Admirava-lhe a resistência, a destreza, o carácter que emanava. Sempre descalço, tinha dias em que brincava e parecia uma criança, mas quase sempre a consciência de si próprio o resgatava para um outro qualquer estado de alma.

Orfão de Pai, levantava-se todos os dias às 6 da manhã, ia apanhar erva para dar de comer aos animais, ordenhava a cabra para alimentar os irmãos, apanhava lenha, acendia o lume, cuidava da mãe doente e só depois saía .

O caminho que fazia para a Escola era muito duro e mal desenhado, apostava todos os dias que chegava só quinze minutos atrasado, talvez dez, e se o professor adoecesse?-pensava- poderia talvez entrar com os outros nesse ritual de brincadeiras cotoveladas e risos cúmplices.

O professor tinha sido considerado herói no exército colonial . A sua disciplina e o seu fervor pedagógico andavam de mãos dadas com os traumas da Guerra em Africa.

A entrada tardia do Jacinto na sala de aula era um instante de angústia, sovado e colocado no parapeito da janela, aí ficava, sem qualquer expressão, como se o castigo não lhe pertencesse. Às vezes fugia, não volta mais... pensávamos.

Voltou sempre, e fez a 4a classe, abrindo nesse dia um sorriso do tamanho da sua liberdade.

Deixei de o ver, tornou-se quase um ermita. Perguntava por ele aos irmãos e diziam-me que estava bem, que trabalhava numa aldeia, vivia na mesma casa e que se ia casar...Mais tarde soube que tinha 2 filhos.

Num dos muitos infortúnios da vida, perdeu o emprego que os sustentava .
A mulher pediu-lhe que procurasse emprego na vila, mas para o Jacinto esse tempo não voltaria, tinha feito vezes sem conta esse caminho mal desenhado...

Decidiu pôr termo à vida, feito Homem.


manel vaca



E TUDO ERA POSSÍVEL


Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido

Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido

E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer

Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer.

Ruy Belo, Homem de Palavra[s], Lisboa, Editorial Presença, 1999

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