Estratégias de propaganda
A D. Otília e o senhor Augusto, como eram carinhosamente tratados os proprietários da Pensão Jardim. Foto retirada do album do neto, João Miguel Ferreira.
Tudo se passou em 1958. Nas eleições presidenciais, Humberto Delgado conseguiu o apoio unânime da oposição e alimentou esperanças de mudança. "Obviamente, demito-o", respondeu, quando interrogado sobre o futuro que reservava a Salazar e o povo acreditou. Centenas de milhar de pessoas sairam às ruas em míticas manifestações em Lisboa e no Porto e, um pouco por toda a parte, organizaram-se apoios. O regime reagiu como sabia: com Américo Tomás e cacetada. Coragem e astúcia eram, então, requisitos obrigatórios, para os que ousavam resistir.
Foi aí que sobressaiu o engenho do velho republicano. A campanha decorreu num mês de Maio que a memória regista mais fresco do que o normal. Mas falamos de um tempo em que a perceção das distâncias dependia da força das pernas e os cães investiam sobre mensageiros que se aproximassem dos portões das propriedades, fossem carteiros ou propagandistas do regime. Ora, é saber antigo que o vinho mata sede, dá forças e arriba o ânimo. Conhecedor de gentes e costumes, o senhor Augusto tratou de encher o copo, mal avistou o homem da propaganda à porta da loja. Deve ter ido de um trago, adornado com estalo de língua e pancada firme no tampo do balcão. "Bote outro"! Claro que sim. E mais outro e ainda outro, estimulados pela frescura do vinho e por conversa animada. Nada de política. Talvez futebol e do nacional, porque os locais tinham ido levar seis a Vale de Açores, o que não era assunto que se quisesse. E o homem da propaganda lá foi esvaziando um atrás do outro, animado pelo verbo solto e pelos calores que começava a sentir. Tirou o casaco e atirou-o para cima do balcão. "Olhe que o suja. Dê-o cá que lho penduro em local seguro". E assim fez, o senhor Augusto, levando-o para o fundo da loja, aproveitando para trocar os panfletos da distribuição, por outros a favor do general. Missão cumprida, o homem da propaganda lá foi despachado à sua vida. A propaganda foi entregue, mas a mensagem era outra.
De muito do que então se passou, reza a História. Com a oposição impedida de controlar o escrutínio, Américo Tomás foi declarado vencedor com mais de 70% dos votos. Nem Salazar acreditou, apressando-se a mudar o sistema eleitoral para a presidência da república. Humberto Delgado foi, a partir de então, um pesadelo que perseguiu o ditador. Do que poucos souberam, foi do contributo de uns tantos copos de verde, fresco e do engenho de Augusto Lourenço Ferreira.
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