segunda-feira, março 10, 2008

Morremos à espera que nasça o “homem novo”

A propósito do diagnóstico de necessidades de qualificação na região de Lafões

Foto: Guilherme Figueiredo

“70% das empresas desvalorizam a certificação escolar dos seus trabalhadores, valorizando as competências profissionais”.

Esta foi uma das conclusões do “Diagnóstico de Necessidades de Qualificação de Recursos Humanos”, estudo que visou identificar as carências de qualificação na região de Lafões. Também se ficou a saber que apenas 30% das empresas contactadas, admitiram a possibilidade de virem a organizar um plano de formação profissional.

Claro que a região de Lafões é excessivamente pequena para que se possam generalizar as conclusões ao todo nacional (embora estejamos convencidos de que os resultados não devem andar longe destes). No entanto, este trabalho põe a nu alguns dos erros das políticas educativas que temos tido e mostra como é perigoso, a nível local, ficarmos à espera que a iniciativa privada tome a dianteira de um processo de mudança.

Adaptar a realidade aos desejos

Não é a primeira vez que, na História de Portugal, se alimenta a ilusão de alterar as limitações da sociedade e da economia, através da educação. Assim como quem tenta adaptar a realidade aos seus desejos, procurando criar um “homem novo”, culto, letrado, para servir de alicerce às mudanças desejadas. Tentámos isso, pelo menos, desde os tempos do Marquês de Pombal, altura em que já se reclamava pela “modernização da máquina administrativa”, tentando pôr cobro à “falta de elasticidade das organizações dependentes do Estado” que permitia “que à sua sombra se desenvolvessem escandalosamente fraudes de toda a espécie, abusos e especulações de toda a ordem” (1). Pois é. Como se vê é grande a nossa experiência nestas coisas, mas o modo como se respondeu teve sempre o mesmo resultado: o fracasso.

O aumento das habilitações académicas, da escolarização da população, não chega, por si só, para alterar seja o que for. Quando muito serve para melhorar o ambiente nos centros de emprego e em alguns locais de trabalho. Isso é evidente nos números de desempregados com licenciatura que têm sido divulgados e nas ocupações que, em desespero de causa, acabam por aceitar.

Para que o aumento das habilitações académicas se traduza em mudanças significativas na economia, é necessário que elas respondam a necessidades sentidas por esta última. Ou seja, devem ser a economia e a sociedade a fazerem exigências à escola e não o contrário. Se assim não for, não há qualquer garantia de que esse aumento de conhecimentos entre no mundo empresarial, correndo-se até o risco de, por ser ignorado, tornar incompreensível o aumento de escolarização exigido pelo Estado. É isto que os números do abandono escolar em Portugal mostram.

Claro que homens como os que administram empresas como a YDREAMS e outras de elevado valor acrescentado, têm consciência da relação existente entre a chamada cultura geral dos profissionais e a sua criatividade. Mas, infelizmente, estamos a falar de excepções e não da regra aplicável ao todo ou, sequer, à maioria do nosso tecido empresarial. Foi isso mesmo que concluiu o estudo feito na região de Lafões.

Assim sendo, esperar que uma iniciativa privada, maioritariamente insensível à importância da educação, contribua para alterar o actual estado das coisas, é quase como acreditar no Pai Natal. A experiência tem mostrado que mais depressa encerram as empresas.

A nossa realidade...

Concentremo-nos nos números, cruzando-os com os divulgados pelo Director do Centro de Emprego de São Pedro do Sul (em entrevista concedida ao Notícias de Vouzela, publicada em 21 de Fevereiro último). 60% da população de Oliveira de Frades, Vouzela e São Pedro do Sul, limita as suas habilitações académicas ao 1º Ciclo. É precisamente este grupo o mais afectado pelo desemprego que, em Vouzela, no final de 2007, se traduzia em 344 inscritos no Centro de Emprego (61,3% do sexo feminino). Os dados disponíveis para Vouzela mostram ainda que o sector do comércio e dos serviços é o que mais contribui para o número de desempregados que, por sua vez, se distribuem maioritariamente pelos grupos etários dos 35-54 anos (47,6%) e superior aos 55 anos (26,4%). O sector primário não parece ter presença significativa. Quanto às empresas, 78% ignora qual a oferta formativa existente na região, ou considera-a desajustada. E se 70% dá mais importância às competências profissionais dos seus trabalhadores do que às suas habilitações académicas, a verdade é que apenas 30% admite vir a ter um plano de formação profissional. Os sectores em que a oferta de emprego é mais difícil de satisfazer, são os da metalurgia e metalomecânica, da construção civil, hotelaria e operadores de máquinas.

...que não se encaixa nos nossos desejos

Embora com todas as cautelas (por estarmos a usar informações com origens diferentes, relativas a cenários diferentes), parece-nos ser possível concluir estarmos perante uma grande maioria de desempregados pouco ou nada qualificada, a entrar numa faixa etária crítica do ponto de vista da formação/reconversão profissional e muitíssimo crítica do ponto de vista do aumento das suas habilitações académicas. O facto de mais de 60% ser constituída por mulheres e tendo em conta as características da nossa sociedade, permite antever alguns desajustamentos face à oferta de emprego existente, quer pelas áreas técnicas em questão, quer pelos horários de trabalho pretendidos.

Para responder a isto, temos uma maioria de empresas que privilegiam as competências específicas (profissionais) dos seus trabalhadores, às gerais (escolares), mas que não pensa tomar a iniciativa de promover a necessária formação. Seria interessante saber quais as expectativas destas empresas quanto à evolução qualitativa da oferta dos seus serviços e quantas admitem, a médio prazo, terem que alterar os seus procedimentos técnicos e, até, a sua área de intervenção.

Neste contexto, faz todo o sentido criar um Centro de Qualificações intermunicipal, tal como foi anunciado, de modo a ajudar os cidadãos e as empresas. Mas também faz, perder ilusões na capacidade da iniciativa privada, por si só, conseguir alterar a situação em que nos encontramos.

Os poderes públicos, nomeadamente os locais, têm que aumentar a sua intervenção, avaliando os recursos disponíveis (reais e não os desejáveis), identificando áreas de potencial interesse e, através da discriminação positiva, contribuir para a criação de serviços que não existem e para a evolução qualitativa dos restantes. Não faz qualquer sentido dizer que “o que falha é uma iniciativa privada forte” (ver nos comentários a este post) e depois limitarmo-nos, tal como na peça de Beckett, à espera de um Godot que nunca mais chega.

Se assim não for, acabaremos por morrer (enquanto comunidade) muito antes do tal “homem novo” ver a luz do dia.
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(1)- História do Ensino em Portugal, Rómulo de Carvalho, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1986

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