sexta-feira, abril 06, 2007

Não pode ser por acaso...

Não pode ser por acaso; ninguém é tão burro. Esta forma de encarar o território, olhando apenas para a faixa litoral e abandonando todo o restante, como quem despeja uma casa para a devolver ao senhorio. Não pode ser por acaso. Certamente não vamos desistir e entregar todo o interior aos "espanhóis". Ou vamos?

Há oitenta anos, Vouzela vivia o drama da supressão da Comarca. Há precisamente oitenta anos, pairavam as incertezas, numa luta contra o tempo, em que se avançava com a construção do tribunal e das casas dos magistrados, tentando contrariar a fatalidade. A notícia acabaria por chegar a 11 de Julho de 1927, originando uma violenta reacção do Presidente da Comissão Administrativa, Dr. Guilherme Coutinho: “(...) tendo chegado a esta terra, cuja autonomia judicial e administrativa tem séculos e ininterrupta existência, o incrível decreto da supressão da sua Comarca, tinha convocado esta sessão extraordinária para se deliberar a atitude a tomar em face da consumação d’este atentado governamental contra a vida d’uma das mais florescentes do paiz e d’uma das mais rendozas comarcas da sua classe, premeditado em proveito das vilas visinhas, modernamente desmembradas da Comarca de Vouzela, por juízes funcionários do Conselho Superior Judiciário inimigos de Vouzela, cujos relatórios parciais e informações tendenciosas enganaram a bôa fé do Exmo. Ministro da Justiça”(1). Seguiu-se a demissão de toda a Comissão Administrativa, porque os homens tinham “vergonha na cara”.

Oitenta anos depois, estamos na mesma. São apenas boatos, ou simples ideias, ou estudos, nada de concreto- seríamos os maiores idiotas se não percebêssemos que o terreno está a ser preparado. Encerraram escolas e até houve quem achasse graça. Encerram as urgências e vai encerrar o Tribunal, substituído por uma “Casa de Justiça”. O mais grave disto tudo, é que nem se pode dizer, como em 1927 se disse da Comarca, que se trata de um “atentado (...) contra a vida d’uma das mais florescentes do paiz e d’uma das mais rendozas comarcas da sua classe”. Vouzela tem estado em processo de morte lenta, com os seus responsáveis distraídos a jogar “Sim City”.

No entanto, talvez seja altura de se reflectir sobre estas medidas dirigidas a serviços estruturantes do ordenamento do território e que estão a ser tomadas assim à laia de quem empurra para o fundo, a cabeça do afogado. Com a facilidade de comunicação que hoje existe entre litoral e Interior, com os “I-Pês”, “I-Cês” e as auto-estradas, porque se insiste no sentido único, “rumo ao mar”? Que justificação “técnica” (obviamente!) impede que a circulação se faça ao contrário, usando serviços bem apetrechados, localizados no Interior? Aparentemente, esta seria a medida racional, já que dispersava os fluxos de trânsito, contribuindo para manter um importante movimento de pessoas em zonas tão deprimidas que já não há psiquiatra que lhes valha.

Mas os senhores autarcas, estejam caladinhos! Lembrarem-se agora que “o Estado está a demitir-se das suas funções”, quando eles próprios se demitiram, abandonando as populações aos ditames do “mercado”, soa a falso. Dizer que “sem serviços, em pouco tempo o que restará a Vouzela será só a cobrança de impostos” é hipocrisia. Na verdade, a sua grande preocupação tem sido o alargamento da área urbana, precisamente para garantir... maior cobrança de impostos. Onde estão as ideias para reordenar as actividades económicas locais, lançar “marcas”, proteger actividades? Nada! A “santa iniciativa privada” havia de aparecer, saída do nevoeiro, e tratar do assunto. Tratou: encostada aos "favores autárquicos" e a tudo o que valesse subsídio, assistiu, interesseira, a um dos mais violentos processos de reconversão social vividos no nosso país. As pessoas foram abandonadas, os mecanismos de apoio social foram subvertidos e o território foi despejado. Agora, talvez possa ser comprado a “pataco”- os "espanhóis" estão entre nós. Não, não pode ter sido por acaso...
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(1)- in, Vouzela- A Terra, os Homens e a Alma, Vouzela, 2001, p. 128

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