Novembro de 1913. À incerteza da obra tinha sucedido a esperança e o espanto. Centenas de operários e engenhos nunca antes vistos, ergueram um viaduto com os seus dezasseis arcos de pedra que muitos apostavam não conseguir resistir. Finalmente, o comboio ia chegar. Todos quantos alguma vez o viram, podem imaginá-lo a entrar na ponte, lançando aos ares o seu apito de aviso de aproximação, ampliado pela dimensão do vale e do silêncio. Do outro lado, junto à estação, o povo apinhado, olhando, admirado e incrédulo, aquela massa de ferro preto que avançava com um som cadenciado por entre nuvens de fumo branco. Finalmente, o comboio chegou.
Hermínio Dias, no
texto que redigiu para o cinquentenário da linha, descreveu os primeiros tempos com o poder de síntese do grande fotógrafo que era:
"Festas, foguetes, contentamentos, encorajamentos para viagens a Espinho (...)". Encorajamento, sim, que isso de entregar a vida a um amontoado de parafusos a que não se podia puxar rédeas, nem obedecia a voz de comando, era aventura arriscada para quem, naqueles tempos, estava mais habituado a confiar nos músculos do que na técnica.
Mas da novidade passou-se à oportunidade e desta à rotina. Aos poucos, Vouzela foi-se familiarizando com uma nova categoria de gente composta por fatores, fogueiros, revisores, guarda freios, carregadores... e esse símbolo de autoridade, respeitado e invejado, o chefe da estação. Aos poucos, foi-se habituando à mistura com os operários da Serração- que, entretanto, tinha procurado a proximidade ao comboio- e das muitas partidas e chegadas, como a da comitiva de António Ferro que, em
1930, ainda antes de dirigir o Secretariado Nacional da Propaganda, usou o caminho de ferro para vir apresentar as entranhas do país aos jornalistas da capital e acabou no Castelo a admirar as vistas, extasiado, enquanto matava a sede com taças de Lafões fresquinho- parece que estava um calor dos diabos. Chegavam estudantes aos fins-de-semana, chegavam jornais ao fim da tarde, chegava gente diferente no verão que, mal descia o último degrau e punha os pés na terra, esticava as costas e enchia o peito de ar, o tal bem puro que por cá a trazia em estadias mais ou menos prolongadas numa das unidades hoteleiras da vila. O Mira Vouga era logo ali, depois da ponte, a caminho do São Sebastião. O comboio marcava o ritmo e os humores. Até os amores, porque o
"vou ali ver chegar o comboio" era desculpa aceite e pretexto válido para passeios de namorados e os arcos da ponte sempre foram pilares seguros para as toneladas de ferro e de afetos.
"Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades". Num tarda nada já eram mais as partidas do que as chegadas e os risos dos encontros não chegavam para fazer esquecer as lágrimas das despedidas. Brasil, África, mais tarde França e Alemanha
"porque aqui não dá e é preciso fazer pela vida". Ou enganar a morte... E o soldado lá escolhia partir, bem cedo, sozinho, gola do capote levantada para que não se percebesse que, afinal, um homem também chora. Ao comboio descobria-se o desconforto dos bancos, a lentidão da marcha, o lado do negro do fumo. Provocava fogos, diziam- graças a Deus que de então para cá nunca mais tal coisa vimos! O futuro estava nas quatro rodas, de preferência individuais e nessas mortalhas de alcatrão negro que nos levavam à porta e haviam de cobrir o país. Recusaram-se propostas de modernização e ignoraram-se sugestões de aproveitamento turístico. Em 27 de Dezembro de 1983, cobriram-no com coroas de flores e bandeiras e chamaram-lhe
"Histórico", porque não se diz mal dum defunto. Pela última vez, o seu apito ecoou ao entrar na ponte, ampliado pela dimensão do vale e do silêncio das gentes que lhe prestavam a última homenagem, suspeitando estarem a enterrar muito mais do que aquela massa de ferro que se despedia por entre nuvens de fumo branco.
Mas os senhores deste mundo, não conhecem a ironia corrosiva do beirão. Vamos ouvindo as notícias sobre a crise do petróleo e os insuportáveis custos da energia e, então, fecho os olhos e imagino-me na sala de jantar da saudosa Pensão Jardim, amplas janelas abertas para o vale e para a ponte. Recordo o som cadenciado da aproximação e aquele silvo agudo que desperta e grita:
"acordem, vouzelenses! Temos um comboio para apanhar".
- Texto escrito para a exposição "100 anos da chegada do comboio a Vouzela".
Ao Carlos Pereira
A exposição
que a Associação D. Duarte de Almeida inaugura, neste 5 de Novembro, no Museu Municipal de Vouzela, deve muito ao investimento e ao entusiasmo do nosso colaborador, Carlos Pereira. Contactamos com ele, pela primeira vez, em 2007, numa altura em que dinamizava um blogue irónica mas certeiramente chamado
"Postal de Vouzela". Já então tinha publicadas dezenas de imagens da vila, revelando um amor pela terra onde, jovem, andou a estudar. Mais tarde
, decidiu
integrar o grupo de colaboradores do
"Pastel de Vouzela" e o resultado final é conhecido: muitas das mais de duzentas imagens da região de Lafões que
publicamos, vieram da sua coleção particular. Mas um outro interesse sempre o animou que, curiosamente, ligava bem com as iniciais,
"CP", com que assinava e assina os seus textos: a história da linha do Vale do Vouga. Esta exposição é o resultado desse interesse, mas também uma simples homenagem a um homem que, embora afastado da região, a sente como poucos. Obrigado, Carlos Pereira. Vouzela precisa de amigos como tu.