sábado, dezembro 06, 2014

Vouzela 2006, Vouzela 2014: um caminho percorrido e um até sempre


Dezembro de 2006. Ventos ameaçadores sopravam já, marcando o fim de um equívoco de crescimento que nos "animou" durante décadas, baseado na construção civil e na exploração do mercado interno. Portugal envelhecia, agarrado à televisão e ao telemóvel (no primeiro caso, com um número de horas médio de assistência superior ao do conjunto de países da União Europeia) e com uma adesão crescente à internet (1). As redes sociais davam os primeiros passos, mas só 4% participava em fóruns de discussão de assuntos de interesse público.

Vouzela mantinha-se orgulhosa do que a "Mãe Natureza" lhe deu, mas cheia de incertezas sobre o que os homens lhe preparavam. Previam-se encerramentos de serviços, alterações administrativas, anunciavam-se obras absurdas. Sobretudo, receava-se o futuro. A população diminuía, o setor primário esvaziava, Por mais "parques industriais" que criassem, a oferta de emprego não aumentava. Como sempre, os medos alimentavam explicações fáceis e mitos: os "outros" eram muito melhores. Não eram. Mas os lamentos em surdina, dificultavam a percepção da realidade.

Foi neste contexto que, em 6 de dezembro de 2006, apareceu o "Pastel de Vouzela". Já por aí contamos como foi. Hoje, o que interessa é o que temos sido. Bem ou mal, defendemos ideias, fizemos propostas, divulgamos o que de melhor tem a região, recordamos pessoas e acontecimentos, animamos debates. Fiéis à delicadeza do nosso símbolo- o pastel de Vouzela- esforçamo-nos por manter o "folhado fino": nada de ataques ou querelas pessoais. Vivemos momentos de alegria e de profunda tristeza. Outros de raiva. Mas tentamos nunca esquecer o que aqui nos trouxe: Vouzela e a região de Lafões, com uma história e um património invejáveis e recursos naturais e humanos riquíssimos que terão que ser, obrigatoriamente, os pilares de qualquer projeto com futuro.

Dezembro de 2014. A ventania continua e esta encosta do Caramulo não nos protege das ameaças. Mas, muita coisa mudou. As águas do Vouga reclamam mil cuidados, mas, finalmente, há a manifestação pública de vontade de lhes acudir. A "Casa das Ameias" continua em ruína,  mas há quem se mexa para impedir o desastre. O eucalipto continua a conquistar espaço, mas organizam-se projetos para lhe impor regras. Escasseia gente no setor primário, mas promovem-se iniciativas para lhe melhorar a imagem. Não menos importante: muitos recusaram o silêncio preguiçoso e triste e animam tertúlias, formam associações, organizam projetos, levantam a voz. Se nos for reconhecida alguma influência nesta mudança, ainda que modesta, a nossa aposta foi ganha.

Após oito anos em que, na maior parte das vezes, estivemos na margem oposta à dos poderes, é de elementar justiça reconhecer que, também aí, alguma coisa mudou. Há, hoje, o sentimento generalizado (que também é o nosso), de que Vouzela é dirigida por quem dela gosta e que tem como elemento norteador da sua ação a defesa e divulgação do que tem de mais característico, em diálogo franco e aberto com os munícipes. Que assim se mantenha e que não lhes faltem forças porque, como já por diversas vezes dissemos, as regiões do interior não têm mais espaço para falhar.

E é tudo. Este "Pastel de Vouzela" interrompe, hoje, a sua atividade. Não se trata de uma despedida, porque as causas que nos animaram desde o início, mantêm-se. Por outro lado, as ameaças são muitas e muito há, ainda, para fazer. A recuperação do Vouga, as garantias sobre a qualidade das nossas águas, a recuperação e preservação dos elementos mais característicos da nossa paisagem, a valorização das atividades rurais, a conquista de lugar cativo no mapa turístico, são algumas das coisas que falta fazer, sem as quais Vouzela (Lafões) será outra coisa qualquer, mas não a que nos interessa. Continuaremos disponíveis para todas essas causas. Se nos parecer útil regressar, regressaremos (vamos manter ativo o nosso espaço no Facebook). Podemos, até, criar novos espaços, porque doçaria inspiradora não falta. Só que um pastel de Vouzela que se preze é produto delicado, com elevadas exigências de qualidade. Não se compadece com rotinas, massa mal trabalhada e recheio aldrabado. "Só os eleitos o sabem fazer, poucos o sabem comer". E só em Vouzela.

António Gil Campos, o sempre vosso "Zé Bonito"

segunda-feira, novembro 17, 2014

Histórias que por cá se contam-VIII: Queiran

Foto retirada do blogue Igarei 
"A dois kilometros da egreja matriz, está o logar de Igarei, onde ha uma capella dedicada a Nossa Senhora das Neves.
Segundo a lenda, a imagem d’esta Senhora appareceu em um monte proximo, aonde hoje existe uma cruz, para memoria, e por isso se chamou o monte de Santa Cruz.
Diz-se que, depois, a mesma imagem apparecêra junto á estrada real, e perto de Igarei.
O povo construiu logo n’aquelle sitio uma ermida, toda de cantaria lavrada, com 52 palmos de comprimento e 31 de largo, com um só altar, que é o da Senhora.
Esta imagem é formada de pedra fina e de excellente esculptura".
Fonte Biblio: PINHO LEAL, Augusto Soares d'Azevedo Barbosa de Portugal Antigo e Moderno Lisboa, Livraria Editora Tavares Cardoso & Irmão, 2006 [1873] , p.Tomo VIII, pp. 16-17

segunda-feira, novembro 03, 2014

Histórias que por cá se contam-VII: Lenda da aparição de Nª Sra. dos Milagres

"Conta-se que em Adside, freguesia de Campia, concelho de Vouzela, apareceu Nossa Senhora debaixo dum cabeço enorme. Fala-se que essa mesma imagem já tinha aparecido noutra povoação perto, mas como não lhe fizeram nenhuma capela ela veio aparecer em Adside. Quem a viu pela primeira vez foi um cego por isso ninguém acreditou. Então ele pediu que o conduzissem até ao local onde ele dizia ter visto Nossa Senhora. Alguns mais crentes conduziram-no, subiram o monte, atravessaram penedos até que a certa altura ele disse que era ali. Não valia a pena caminhar mais. Tinha sido ali que a vira.
 Estavam perplexos, o rochedo era enorme e estava assente numa das suas partes mais estreitas, estavam admirados como é que não caía. De repente o cego começou a falar, e a caminhar sozinho, começou a ver tudo e todos e dizia continuadamente que tinha sido debaixo daquele rochedo que vira Nossa Senhora que vestia um manto branco. Como todos começaram a fazer troça só porque não viam nada, o homem resolveu ir embora. E foi visto que já conseguia ver foi sozinho.
 Quando chegou à sua povoação a ver, as pessoas começaram todas a dizer que tinha sido um milagre pois ele que não via um palmo à frente do nariz e agora conseguia ver coisas que ninguém via.
 Nessa mesma noite esse homem faleceu. A partir desse dia as pessoas que acreditavam, a sua vida continuou a correr normalmente enquanto que às pessoas que não acreditavam começaram a acontecer-lhes desgraças e os seus animais começaram a morrer. Assim as pessoas que acreditaram começaram a pensar em fazer uma capela. Mas eles começaram a fazer a capela num sítio e no dia a seguir aparecia tudo estragado e uns metros mais abaixo apareciam 4 pedras como que a indicar que era ali que a capela deveria ser feita. Andaram assim durante 15 dias, no final um senhor disse que assim não poderia continuar e apesar dos incómodos e trabalhos que isso pudesse trazer a capela teria de ser feita no sítio que aparecia marcado.
 Assim fizeram e nunca mais o trabalho apareceu estragado e o nome da Santa ficou Nossa Senhora dos Milagres porque diziam que o que aconteceu ao cego tinha sido um milagre".
Fonte Biblio CRUZ, Julio Lendas Lafonenses Vouzela, AVIZ / Clube de Ambiente e Património da Escola Secundária de Vouzela / ADRL, 1998 , p.24

quinta-feira, outubro 09, 2014

500 anos do foral manuelino de Lafões

Imagem retirada da página do Município de Vouzela no Facebook

"(...) e portanto mandamos que todas as coisas contidas neste foral que nós pomos por lei se cumpram para sempre do teor do qual mandamos fazer três um deles para a Câmara do dito concelho de Lafões e outro para o senhorio dos ditos direitos e outro para a nossa Torre do Tombo para em todo o tempo se poder tirar qualquer dúvida que sobre isso possa sobrevir dada na nossa mui nobre e sempre leal cidade de Lisboa aos XV dias de Dezembro do ano de nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil quinhentos e catorze (...)"- in, Foral de Lafões 1514, Câmara Municipal de Vouzela, 1997.

No mesmo ano em que se publicou a primeira edição completa das Ordenações Manuelinas (que havia de ter uma versão definitiva em 1521), Lafões via reformadas algumas das diretivas por que se tinha regido até então e aprovado o seu novo foral para regular a vida de todos quantos por estas terras viviam. Todos? Não.  Havia exceções, como as do "lugar do Banho" (Termas), porque, como então se explicava, "particularmente se fará foral do dito lugar e foros dele para ser sempre apartado da dita terra". Assim aconteceu, no ano seguinte. Para além dele, mereciam tratamento especial Calvos, Queirã, Moçâmedes, Oliveira de Frades, o "couto do mosteiro de São Crsitovão" e Alcofra.

D. Manuel I foi o rei em cujo reinado os navegadores portugueses chegaram à Índia e ao Brasil, na continuação do rumo da política expansionista traçado pelo seu antecessor e primo, D. João II. Se a consolidação do império português foi o grande objetivo da sua política externa, o reforço do poder real, através da aplicação de normas unificadoras, fez do seu reinado um patamar importante da construção do Estado moderno. Como exemplo do que dizemos, tanto podemos referir o conjunto das suas "Ordenações" (em que, por exemplo, se generalizava a todo o reino os padrões de pesos e medidas já então usados em Lisboa), como os diversos forais publicados, conhecidos por "Forais Novos". Ao contrário dos primeiros forais, estes mais não eram do que listas de "impostos", coimas e exceções com a preocupação (nem sempre conseguida) de uniformizar.

O foral de Lafões de 15 de dezembro de 1514, é um interessante documento para se compreenderem as relações sociais da época, a vida económica da região e os valores que orientavam a vida dos homens. Fique sabendo que o imposto exigido pela venda de um escravo, era igual ao do negócio de um "cavalo rocim ou égua e de mir ou mula". Quanto às penas aplicadas por  ofensas à integridade física, ficava isenta "mulher de qualquer idade". Contudo... também disso beneficiavam "os que castigando sua mulher e filhos e escravos tirarem sangue (...)". E numa altura em que se tenta dar cobertura legal à apropriação privada dos baldios, talvez valha a pena atender ao que  se dizia sobre o uso das "terras maninhas", permitindo que "os povos ou pessoas a que tocar as podem tomar e destapar e fazer delas livremente o que faziam e converte-las em seus usos e logramento sem mais haverem mester outra autoridade de justiça nem incorrerem por isso em alguma pena (...)" (1).

Em 1997, a Câmara Municipal de Vouzela fez uma primeira edição deste documento que rapidamente esgotou. Para as comemorações do quinto centenário, está prevista nova edição, a não perder por todos quantos se interessam em conhecer os mais importantes mosaicos da nossa história coletiva.
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(1)- A este respeito é interessante a contradição entre o disposto na maioria destes forais e nas "Ordenações", onde aparece uma maior preocupação pelo uso coletivo destas terras (vd., História de Portugal, dir. José Mattoso, 3º vol., pág. 172 )

quarta-feira, outubro 01, 2014

Histórias que por cá se contam-VI: A cova do Lobisomem

"A cova do Lobisomem é uma caverna pré-histórica, encontra-se na povoação de Cambra de Baixo, da freguesia de Cambra, situada na margem direita do rio Alfusqueiro. Acerca desta caverna, existe uma lenda, onde se fala que havia um fantasma  que de dia descansava na margem do rio, e de noite percorria sete freguesias. A situação desta caverna em relação ao rio, e o facto de ficar na parte externa duma curva deste, onde a erosão é portanto mais activa, levando a querer que ela tenha sido em parte escavada pelas águas.
Esta caverna consta de uma galeria, ou corredor cuja entrada mede 2.40m de altura por 2m de largura, indo estreitando gradualmente para o interior, conduzindo a uma vasta câmara de forma oval irregular por um estrangulamento onde a custo cabe um homem de pé, pois não tem de largura mais de 40 cm, tendo aliás 2.20m de comprimento.
A câmara, com cerca de 5m de comprimento por 2.50m de largura e outro tanto de altura, pode comportar 10 homens bem à vontade, O comprimento total incluindo galeria e câmara mede l8m.
Toda a caverna foi aberta em saibro muito rijo, quase tão consistente como o granito, tendo na parte superior da câmara um pequeno buraco totalmente tapado por uma cobertura de pedras roladas ligadas por um cimento arenoso e argiloso muito duro e incontestavelmente produto da indústria humana. O fundo está completamente obstruído de areia e pedras roladas.
Depois de feitas algumas escavações, demonstrou-se que as águas das cheias em sucessivas invasões, levaram quaisquer restos humanos que ali porventura tivessem sido depositados, enterrados, mas a prova irrefutável de que a caverna foi habitada tivemo-la nós, pela presença de pedras calcinadas e vestígios de fogo no tecto do recinto interior".
Fonte Biblio: CRUZ, Julio Lendas Lafonenses Vouzela, AVIZ / Clube de Ambiente e Património da Escola Secundária de Vouzela / ADRL, 1998 , p.29.

A lenda

Reza a lenda que em noites de lua cheia o lobisomem percorre as ruelas graníticas da povoação de Cambra, caçando quem apanhar desprevenido. As portadas das janelas fecham-se e as crianças escondem-se debaixo das mantas quando ouvem o tropel das suas patas na calçada. Mas que monstro é este que assim apavora as noites enluaradas?
Acontece que nas famílias da região, nas mais numerosas, era costume haver 7, 8, 9 e mais filhos... Se, ao chegar o sétimo filho, nascesse uma menina havia que chamar-lhe Custódia ou Benta e se fosse menino havia que pôr-lhe o nome de Bento ou Custódio. Mas, nem todas se lembravam ou então não acreditavam na maldição e assim lá lhe davam outro nome. Então, em todas as noites de lua cheia, essa criança, ao chegar à idade adolescente sofria uma terrível transformação: crescia-lhe os dentes e as orelhas, as unhas transformavam-se em garras e o corpo ficava coberto de pêlo negro e hirsuto... os olhos chamejantes vasculhavam o escuro, saltava de casa para fora, procurava as vítimas indefesas, caçava-as e depois arrastava-as para o seu esconderijo: uma gruta, na margem do rio Couto, perto de uma velha torre onde as devorava sofregamente! Testemunho disso são os ossos que por ali se iam encontrando e as paredes enfarruscadas da cova onde, nas noites mais frias, o monstro acendia uma fogueira para se aquecer.

- Retirada de Geocaching

domingo, setembro 14, 2014

Histórias que por cá se contam-V: Lenda de Santo Estêvão

 Igreja Matriz de Fornelo do Monte, construída em 1724 sobre as ruínas da capela de Santo Estêvão.
"À semelhança de outras terras, Fornelo do Monte também tem a lenda do seu padroeiro.
Santo Estêvão, que foi Papa entre os anos 254 a 257, foi um dos mártires dos primeiros tempos do cristianismo. E um dia, há muitos séculos, o seu espírito passou pelas montanhas de Fornelo, e ao contemplar as belezas naturais que Deus ali criara, resolveu transformar uma das pedras ali existentes na sua própria IMAGEM, deixando-a encostada a um grande penedo, em sítio bem visível dos moradores. E o povo guardou-a com grande devoção, construindo-lhe então uma capela em sua honra.
Mas.., os de Ventosa, quando souberam do aparecimento da milagrosa Imagem, vieram buscá-la, e levaram-na para a Igreja Paroquial de Santa Maria de Ventosa a que Fornelo nesse tempo pertencia. E sempre que os de Ventosa o faziam, a Imagem voltava ao lugar onde tinha aparecido, até que ficou definitivamente em Fornelo, depositada na capela que lhe construíram.
E foi por cima das pedras desta antiga capela, que o povo no século XVIII erigiu a sua própria Igreja".
Fonte Biblio CRUZ, Julio Lendas Lafonenses Vouzela, AVIZ / Clube de Ambiente e Património da Escola Secundária de Vouzela / ADRL, 1998 , p.25

segunda-feira, setembro 01, 2014

Histórias que por cá se contam-IV: Lenda da caninha verde

 Caminho de acesso à Ribeira de Ribamá. Foto retirada daqui.

Nota prévia: A versão da lenda que apresentamos de seguida, da autoria de Gentil Marques, publicada em 1962,  foi por nós escolhida por ser a mais rica em pormenores. No entanto, alertamos desde já para duas referências que certamente vão parecer estranhas aos leitores mais familiarizados com a região. Desde logo, é duvidoso que na versão original da lenda fosse feita qualquer referência ao rio Vouga (quando muito a Ribamá), tendo em conta o seu percurso pela região. Depois, quando o autor integra Vouzela "na comarca de São Pedro do Sul", é preciso não esquecer que estamos perante um texto inicialmente publicado em 1962. Ora, Vouzela perdeu a comarca em 1927 e apenas a recuperou em 1973... até hoje.
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"Alguma vez, estimado leitor, já passou pela bonita e pitoresca freguesia de Fataunços, perto de Vouzela, na comarca de São Pedro do Sul, situada nas margens fascinantes do rio Vouga?... 
Pois em Fataunços há uma casa brasonada que tem a sua história lendária, recordada por uma escultura graciosa e simbólica que ainda hoje lá está.

Nos exórdios sáfaros da monarquia lusitana, vivia num palacete da freguesia de Fataunços um velho guerreiro ainda descendente do famoso chefe mouro Cid Alafum, que fora senhorio daquelas terras do couto de Alafões, havia já muitos séculos. Mas o descendente de Cid Adafum — El Haturra, era o seu nome — em nada se parecia com o terrível antepassado, que se mostrara sempre cruel e despótico.
Pelo contrário, El Haturra primava por ser bonacheirão e alegre, aceitando sem sombras de tristeza o domínio português.
Era velho e feio, sim. E usava permanentemente, à laia de bengala, uma velha cana ressequida pelo tempo e enegrecida pelo uso. Cana que vinha sendo transmitida na família, de geração em geração, sempre com palavras misteriosas murmuradas ao ouvido do novo possuidor...

Os seus amigos rodeavam-no e perseguiam-no com perguntas acerca de tão estranha caninha. Principalmente Álvaro, um moço português ao qual o velho mouro se afeiçoara sinceramente. E, um dia, Álvaro resolveu-se a falar com ele a sério, muito a sério, sobre o assunto que o intrigava.
— Escutai, El Haturra... Para vosso bem, aconselho-vos a abandonar essa vara negra e feia que utilizais como bordão.
E olhando-o bem de frente, acentuou:
— Para vosso bem, repito!
Mas o velho El Haturra limitou-se a encolher os ombros com ar displicente, e a dizer em tom firme:
— Não quero!
Álvaro voltou a olhá-lo, sem compreender.
— Como é isso possível, se sois um homem de bom raciocínio?... Pois não entendeis que tal vara serve de gáudio à rapaziada e é motivo de constante troça para vós?
Soberbamente, num jeito que contrastava com a sua aparente velhice, o mouro limitou-se a dizer, sem qualquer hesitação:
— Eu sei o que faço, amigo! Esta vara negra e seca vale muito... Muito mais do que podeis pensar... É o bastão derradeiro do comando que usou Alafum, na célebre retirada dos agarenos…
Um sorriso leve nasceu e morreu nos lábios de Álvaro.
— Ora, ninharias!... Velharias!...
Foi a vez de El Haturra o fitar bem no fundo dos olhos.
— Pois não acreditais que esta vara tem magia?
O ligeiro sorriso de Álvaro voltou a aparecer, para logo se transformar numa clamorosa gargalhada.
— Magia? Claro que não acredito que possa haver qualquer espécie de magia nessa vara grotesca!
E voltou a gargalhar, num provocante desafio.
O velho El Haturra primeiramente pareceu irritado. Os seus olhos semicerraram-se e parecia que ia explodir em cólera. Mas depois acalmou-se, e a sua voz tornou-se branda, confidencial:
— Álvaro, vós bem mereceis a minha confiança. Tendes mostrado muita vez que sois realmente meu amigo. Por isso mesmo vou confiar-vos um segredo que somente tem sido transmitido na nossa família, de pais para filhos ou de tios a sobrinhos...
Respirou fundo e fez um gesto de chamamento.
— Aproximai-vos mais, por favor. O que tenho a dizer-vos é segredo, absoluto segredo. Só pode ficar entre nós dois...
E espiando ainda em redor, atentamente, para se convencer de que estavam sozinhos, El Haturra fez a grande revelação.
— Ouvi bem, Álvaro... Quando esta vara, velha e ressequida pelo tempo, conseguir reverdecer é sinal sagrado do almejado encontro de dois primos descendentes de Cid Alafum… Compreendeis agora porque eu nunca deixo esta varinha, meu bom Álvaro?
Este mostrou-se um pouco aturdido. E no seu rosto espelhou-se a dúvida que se lhe formava no espírito.
El Haturra decidiu portanto ser mais explícito.
— Como sabeis, quando Cid Alafum perdeu a batalha, todos os seus tesouros ficaram escondidos por artes mágicas… E com eles as lindas sarracenas que se ouvem por aí, de noite, encantadas, carpindo as suas mágoas...
Um brilho mais vivo passou no seu olhar.
— Porém, no dia em que nestas terras se encontrarem, face a face, um descendente e uma descendente de Cid Alafum...
— Que acontecerá? — perguntou o moço Álvaro, sem poder conter a sua curiosidade.
El Haturra respondeu no mesmo tom calmo de sempre:
— Acontecerá que todo o antigo senhorio destas terras voltará a pertencer-nos... as belas mouras serão desencantadas... e a alegria tornará a substituir a tristeza nos seus corações!
Cordialmente, o moço Álvaro pousou a sua mão forte no ombro de El Haturra.
— E achais... que esse encontro virá a dar-se?
El Haturra elevou os olhos para o alto.
— Estou certo de que sim. Mas já não sei se será no meu tempo... sinto-me velho e cansado...
E baixando a voz, de novo em tom confidencial, ajuntou:
— Além disso, é preciso que os dois primos que se encontrem professem ambos a lei de Mafamede.
— Porquê a de Mafamede?
— Porque é a mais completa em sortilégios!
Álvaro nada mais disse. E, agora em silêncio, os dois homens continuaram o seu passeio.

E muitos outros passeios deram pelos campos fora, falando sobre o mesmo assunto, comentando-o cada um deles à sua maneira...
Até que, em certa linda tarde de Primavera, quando juntos deambulavam nas margens do rio Vouga, viram descer de um dos montes vizinhos uma princesa jovem e esbelta montando um ginete branco. A seu lado cavalgava uma formosíssima aia, montada num cavalo negro. 
O velho El Haturra e o seu companheiro quedaram-se encantados com tão magnífico quadro vivo, na moldura da natureza enebriante. E a princesa e a aia mais belas se mostravam à medida que se aproximavam.
Especialmente a aia apresentava um curioso e estranho contraste entre os seus olhos azuis e a sua trança muito negra...
De súbito, Álvaro agarrou com força o braço de El Haturra e apontou a vara que o outro segurava.
— Vede! Olhai! O vosso bordão está a reverdecer!
E a voz de El Haturra, como que remoçada, confirmou também:
— É verdade... Cumpre-se a profecia do grande Cid Alafum! Acreditais agora?
— Decerto que sim!
Mas já o próprio Álvaro se assombrava mais ainda diante da profunda e inesperada transformação de El Haturra. Desaparecera o velho por completo. O corpo endireitara-se, os ombros tinham alargado, as rugas do rosto sumiram-se, os olhos ganharam novo brilho, o cabelo voltou a ser negro e farto. El Haturra era agora um jovem como ele!
E Álvaro, intrigado, confuso, mal pôde articular uma exclamação de surpresa.
— É fantástico!... Estais jovem e belo!
El Haturra soltou uma risada fresca.
— Ainda bem que testemunhastes tudo quanto se passou, meu bom Álvaro. Assim não tendes mais que duvidar...
A voz de Álvaro balbuciou uma pergunta a medo, demorada e hesitante:
— Quer então dizer... que... nas antigas terras de Cid Alafum... se encontraram dois descendentes seus?...
— É isso mesmo, Álvaro!... No instante em que a olhei, senti logo dentro de mim que algo iria passar-se.
— Referis-vos à princesa, El Haturra?
O agora jovem mouro abanou a cabeça num decidido gesto de negação.
— Não, meu amigo! Falo-vos da aia. A bela aia de cabelos soltos e que montava o cavalo negro... Essa, sim!... Tenho a certeza que é essa que eu encontrei… Ainda oiço a música da sua presença dentro de mim!...
Desde esse dia, não mais El Haturra teve sossego. E o moço Álvaro também não, já que desejava acompanhá-lo na sua aventura. Seguindo no encalço das duas jovens, acabaram por saber que se dirigiam à corte do rei de Portugal. E eles lançaram-se também no mesmo caminho...
Conta a história velhinha que depressa o novo El Haturra conseguiu que a bela aia correspondesse ao seu amor. Tudo os atraía, como se esse encontro estivesse, de facto, marcado pelo Destino...
E, graças à influência de Álvaro e da sua família, fácil foi alcançar também a permissão do rei de Portugal para que o casamento se realizasse o mais rapidamente possível.
Simplesmente, o rei impôs uma condição. Condição essa que a jovem e bela aia se apressou a transmitir ao enamorado El Haturra, pedindo-lhe que viesse falar com ela.
Ele não se fez esperar.
— Aqui estou, minha bem-amada… Passa-se algo de grave?
— Um tanto, sim, meu senhor… Trata-se do nosso futuro.
Os nervos de El Haturra puseram-se em alerta. Desconfiados. Excitados.
— Mas que há? Dizei depressa! Bem sabeis como vos amo... El-rei voltou atrás com a sua palavra?
Ela sorriu, a acalmá-lo.
— Que ideia, meu senhor!... Bem sabeis que palavra de rei não volta atrás...
E inclinando-se para ele, confidenciou-lhe:
— Sim, el-rei consente na nossa união, e até me prometeu como presente de noivado o senhorio destas terras... Porém, impõe uma condição.
De novo, os nervos de El Haturra se alteraram.
— Uma condição? Qual?
O sorriso da bela aia tornou-se ainda mais doce.
— Apenas isto, meu bem: el-rei de Portugal quer que vos baptizeis! 
A reacção foi imediata e violenta.
— Quê? Baptizar-me, eu? Eu que sou um mouro… um descendente do grande Cid Alafum?...
Ela tentou envolvê-lo com a sua sedução.
— Por isso mesmo, meu senhor! El-rei deseja que sejais um dos nossos.
Ainda desta vez El Haturra se refugiou na sua obstinada recusa.
— El-rei pede-me o impossível!
Foi a vez dela se mostrar retraída. Magoada. Chorosa.
— Não aceitais?
Sem a olhar sequer, como que falando consigo próprio, o mouro repetiu monocordicamente.
— Não aceito... Não aceito...
E a donzela, aproximando-se mais, falou-lhe num misto de ternura amimada e de aflita emoção:
— Pensai bem, meu senhor!... Se consentirdes em ser baptizado, el-rei dar-vos-á todas as terras dos vossos antepassados e eu poderei ser a vossa esposa fiel e dedicada... Que mais quereis, meu senhor?
Ele segurou-lhe as mãos. Longamente. Apaixonadamente.
— Amo-vos tanto, senhora... E el-rei pede-me tanto também!
A jovem e bela aia arriscou então uma pergunta decisiva.
— Valerá mais a vossa fé do que o vosso amor?
E logo El Haturra respondeu, como ela esperava que ele respondesse:
— Não, mil vezes não!... Sem vós, eu não serei nada! Só desejo na vida possuir o vosso amor!
— Pois ele vos dará igualmente todas estas terras... Aceitais?
Sem olhar mais para o passado, voltado apenas para o futuro, El Haturra respondeu:
— Aceito!... Aceito, sim, meu amor!
Tudo se aprontou, portanto, para o casamento de El Haturra com jovem e bela aia. Porém, antes da cerimónia nupcial, conforme estava combinado, houve que proceder ao baptismo do noivo. E pela força das circunstâncias este viu-se obrigado a deixar a caninha verde fora da igreja...
Então aconteceu algo de extraordinário. Ao ser baptizado, El Haturra instantaneamente deixou de ser o moço forte e garboso em que se tornara, para se transformar de novo no velho alquebrado e feio que já fora. Conforme fora transmitido de geração em geração, a magia da caninha verde só se realizava se os dois parentes de Cid Alfum obedecessem à lei de Mafamede!
 
Segundo se diz, a noiva desmaiou de comoção. Quando recobrou os sentidos fugiu para o palácio — e não mais quis ouvir falar do seu estranho noivado.
Por seu turno, El Haturra desapareceu também para sempre. Não se voltou a falar dele. Mas a caninha verde foi arrecadada e guardada em sítio secreto, para nunca mais ser descoberta.
Contudo, reza a tradição popular, se na mesma hora e no mesmo local de Fataunços em que se deu o encontro entre os dois descendentes do grande Cid Alafum alguém gritar três vezes: «Viva o fidalgo da caninha verde!» (como o povo ficou a chamar-lhe), logo se escutam pelos montes vizinhos gargalhadas argentinas, seguidas do sussurrar plangente das águas do rio Vouga. Para o bom povo da região trata-se da alegria das mouras encantadas que se julgan libertadas do seu cativeiro, e logo compreendem que tudo continua na mesma..."
Fonte Biblio: MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisboa, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume III, pp. 143-148, in Arquivo Português de Lendas.